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SAP e o negócio do género: “Uma viragem de 180 graus não seria um problema se servisse o preço das ações”

SAP e o negócio do género: “Uma viragem de 180 graus não seria um problema se servisse o preço das ações”

A linguagem cria a realidade. Ela estrutura a percepção, estabelece limites para o que pode ser dito e abre espaço para novos significados. Aqueles que mudam a linguagem não querem apenas retratar a realidade, mas moldá-la ativamente. Nesse sentido, a generificação é entendida como uma intervenção: o gênero deve se tornar visível, a igualdade é ancorada na linguagem e a discriminação é eliminada. Pelo menos, essa é a ideia daqueles que acreditam na necessidade da linguagem de gênero.

Mas, assim que essa afirmação se traduz em organizações e empresas, surge uma questão delicada: será isso uma expressão de convicção interna – ou uma estratégia impulsionada principalmente por interesses econômicos? A questão de gênero há muito deixou de ser um tópico de discussão exclusivo em debates sociais. Asteriscos, travessões e dois pontos são parte integrante da comunicação de órgãos governamentais, instituições culturais e instituições de ensino. As empresas também estão interferindo cada vez mais na gramática alemã. Resistência dos funcionários? Fútil. Aqueles que não se adaptarem serão marginalizados.

Funcionário relata pressão interna significativa

Especialmente em empresas internacionais, fica claro o quanto a linguagem faz parte de uma estratégia maior. Ela serve não apenas como meio de comunicação interna, mas também como ferramenta para o cultivo de imagem, regulamentação e lógica de mercado. Essa tensão é particularmente evidente no caso da SAP.

Fundada em 1972 e sediada em Walldorf, Baden-Württemberg, a empresa de software é uma das maiores empresas de tecnologia do mundo. Com mais de 100.000 funcionários, milhões de clientes e laços estreitos com praticamente todas as grandes corporações do mundo, a SAP tem um alcance que vai muito além da área de software empresarial.

Um funcionário da empresa falou ao Berliner Zeitung sobre a significativa pressão interna que enfrentou ao lidar com questões de gênero, conversas memoráveis ​​com o departamento de RH e possíveis razões pelas quais ele acredita que a SAP continua aderindo às suas práticas de gênero. Elias P.*, funcionário de longa data da gigante do software, não quis ser identificado por medo de ser demitido.

Se uma empresa decide regulamentar a linguagem e especificar o que e como algo é dito, isso raramente acontece casualmente. Geralmente, envolve conjuntos detalhados de regras que especificam quais termos, formas e maneiras de se dirigir são considerados apropriados tanto interna quanto externamente. Na SAP, essas normas internas são intituladas "Guia de Gênero", abrangem 20 páginas e são descritas como "uma abordagem equilibrada para atender às necessidades de comunicação de uma empresa de capital aberto".

Oficialmente, trata-se de uma coleção de recomendações não vinculativas que visam comunicar "da forma mais inclusiva possível". Na prática, porém, as diretrizes se tornaram há muito tempo um padrão difícil de ignorar — pelo menos é o que relata Elias P.

Em vez de “ele” ou “ela”, a SAP recomenda o “eles” no singular

Até mesmo o histórico de desenvolvimento do guia causou confusão para a funcionária da SAP. O documento, publicado em grande parte em inglês, foi escrito por uma indiana que mora nos EUA e que, segundo informações do Berliner Zeitung, não fala alemão. Todos os exemplos em alemão incluídos no Guia de Gênero vêm de uma americana que mora na Alemanha, mas não é falante nativa. Por que a SAP escolheu essas duas autoras? O Berliner Zeitung não recebeu nenhuma resposta a essas e outras perguntas.

De qualquer forma, uma olhada no Guia de Gênero revela o quão detalhado o SAP regula o uso da linguagem. O conteúdo do guia segue padrões familiares. Em textos em inglês, termos específicos de gênero devem ser evitados; em vez de "ele" ou "ela", o SAP recomenda o singular "eles". Termos como "homem" ou "mulher" devem ser usados ​​apenas quando se referirem explicitamente a homens ou mulheres.

Além disso, há diretrizes claras para formas de tratamento: em vez de "Sra." ou "Srta.", use apenas "Sra." em inglês, complementado por "Sr." para pessoas não binárias em caso de dúvida. Em e-mails, é melhor evitar títulos e usar apenas o primeiro e o último nome. É explicitamente enfatizado que revelar a identidade de gênero de uma pessoa sem o seu consentimento constitui uma violação da Declaração Global Antidiscriminação da SAP.

As Diretrizes de Gênero da SAP afirmam explicitamente que o gênero pode ser um obstáculo significativo para pessoas com deficiências de leitura ou visuais.
As Diretrizes de Gênero da SAP afirmam explicitamente que o gênero pode representar um obstáculo significativo para pessoas com deficiência visual ou de leitura. Marcus Brandt/dpa

O duplo movimento aqui evidente é notável: por um lado, as regras são declaradas não vinculativas; por outro, são explicitadas em detalhes tão concretos, com uma infinidade de exemplos, proibições e formas alternativas, que a impressão de normas vinculativas é quase impossível de evitar. Um novo padrão está sendo estabelecido, indo muito além de questões gramaticais ou de estilo. Apesar disso, ou talvez justamente por isso, os autores enfatizam: "Ninguém deve ser julgado injustamente com base na aplicação ou não destas diretrizes em sua própria comunicação."

E quais são as recomendações para textos escritos em alemão? Os autores preferem usar dois pontos dentro da palavra. O raciocínio deles é que isso garante que o texto permaneça fácil de ler. Ao mesmo tempo, porém, as diretrizes mencionam explicitamente que isso pode representar um obstáculo significativo para pessoas com deficiência visual ou de leitura: "Devemos garantir que nossas diretrizes neutras em termos de gênero não comprometam outros aspectos da comunicação, como problemas de acessibilidade ou compreensão para falantes não nativos."

É justamente aqui que começam as críticas de Elias P. Ele aponta que cerca de dez milhões de pessoas na Alemanha são afetadas pelo analfabetismo funcional. Essas pessoas já têm dificuldades com a linguagem padrão e são ainda mais sobrecarregadas por caracteres especiais como os dois pontos. Além disso, há cerca de oito milhões de pessoas com deficiência visual ou auditiva. A linguagem diferenciada por gênero muitas vezes dificulta a compreensão, especialmente quando os textos são lidos em voz alta ou processados ​​digitalmente.

Afinal, segundo Elias P., existem aproximadamente 25 milhões de pessoas com histórico migratório vivendo na Alemanha, muitas das quais não cresceram tendo o alemão como língua nativa. Para elas, o acesso aos textos também é dificultado por convenções ortográficas complexas. "Se somarmos todos esses grupos", diz P., "estamos falando de mais de 30 milhões de pessoas potencialmente excluídas por regulamentações linguísticas excessivamente complexas."

O que é particularmente irritante é que, embora a SAP tenha reconhecido esses argumentos, em discussões com o departamento de RH, eles argumentaram que muitos desses grupos nem sequer estavam representados dentro da empresa. Para Elias P., esse raciocínio não é apenas míope, mas também contraditório: "Se não há uma única pessoa negra em uma sala, é aceitável usar a palavra com N? Claro que não. Então, por que a linguagem discriminatória deveria ser justificada apenas porque os afetados são aparentemente invisíveis dentro da empresa?"

Além disso, como uma empresa global, a SAP é conhecida por empregar pessoas de todas as origens culturais. Na visão de P., uma empresa comprometida com a diversidade não pode usar a desculpa de que certos grupos não são representados internamente, o que também é falso considerando sua origem imigrante. Não é à toa que a comunicação interna é quase exclusivamente em inglês.

“Uma reviravolta de 180 graus não seria um problema se isso beneficiasse o preço das ações.”

Juntamente com colegas da Síria, Alemanha e outros países, ele se aproximou novamente da diretoria e criticou o "desenvolvimento de gênero". Em vez de acessibilidade ou participação, a discussão se concentrou principalmente na importância dos rankings internacionais, nos quais as empresas são avaliadas de acordo com determinados critérios de igualdade. Para Elias P., esse foi o momento em que ele percebeu: "Isso tem menos a ver com inclusão e mais com a imagem externa da SAP".

Em conversas com o departamento de RH, ele foi informado de que a introdução de uma linguagem neutra em termos de gênero se referia principalmente a esses rankings. Desde então, sua suspeita se confirmou: a empresa não está mudando a linguagem por convicção, mas sim como parte de uma estratégia global voltada para a reputação e o mercado de capitais.

Elias P. está convencido: se a gerência tivesse a impressão amanhã de que uma linguagem neutra em termos de gênero seria mais vantajosa economicamente, a SAP mudaria de ideia sem hesitar. "A reviravolta de 180 graus não seria um problema se beneficiasse o preço das ações", afirma. Nos Estados Unidos, essa mudança de rumo já foi implementada após a reeleição de Donald Trump.

Dois pontos ou asterisco? Não existe uma regra de gênero uniforme em todo o país.
Dois pontos ou asterisco? Não existe uma norma de gênero uniforme em todo o país. Wolfgang Maria Weber/imago

Enquanto diretrizes detalhadas estão sendo desenvolvidas e comunicadas externamente para a Europa, a SAP suspendeu temporariamente sua cota para mulheres e todos os programas de diversidade em andamento nos Estados Unidos. Por quê? Porque o presidente Trump, ao contrário de seu antecessor Joe Biden, critica tais medidas. Se as empresas persistirem com essas políticas, correm o risco de perder contratos lucrativos.

Na assembleia geral anual realizada em maio deste ano, a administração admitiu que precisava aderir ao "quadro legal" para manter sua presença no mercado americano. Como a SAP não respondeu a uma pergunta do Berliner Zeitung, não está claro se a empresa agiria de forma semelhante na Alemanha, caso fosse politicamente desejada.

No entanto, o contraste dificilmente poderia ser mais claro. O que é considerado um sinal de progresso na Europa é relativizado ou abandonado nos EUA. Não porque as crenças mudaram, mas porque as condições econômicas assim o exigem. Então, a língua não é um valor fixo na SAP, mas apenas uma variável no cálculo global?

E o que se segue do que Elias P. relata em nome de "muitos colegas"? Um funcionário teria já puxado a corda: "Um colega que já saiu da empresa pediu para não ser tratado de forma específica em relação ao gênero. A situação se intensificou: ele foi retratado como problemático na frente da equipe. Mesmo que ninguém seja oficialmente obrigado a se conformar, surge de fato uma pressão para se conformar."

Expressar críticas abertamente continua sendo uma exceção, diz ele, devido ao grande medo de consequências profissionais. No entanto, a SAP não é de forma alguma a única empresa que exerce pressão sobre sua força de trabalho por meio de diretrizes de gênero. Suas próprias experiências coincidem com relatos de pessoas que foram levadas ao conhecimento de Elias P. como coiniciador de um referendo contra linguagem apropriada ao gênero.

Muitas pessoas lhe disseram que não querem participar da iniciativa por medo de perder o emprego. "Aquele foi um momento crucial para mim", diz ele, "porque mostra o quão profunda se tornou a desconfiança em relação ao governo e às estruturas institucionais."

No fim das contas, não se trata de crenças. Trata-se de lucro.

Este exemplo aponta para um desenvolvimento que vai além da questão específica da linguagem: quando funcionários e cidadãos sentem que expressar suas opiniões pode prejudicá-los, a confiança nos processos democráticos diminui. Em vez de debate aberto, desenvolve-se um clima de autocensura. Para Elias P., a generificação na SAP é, portanto, também um sintoma de uma insegurança mais profunda: a linguagem, que deveria unir, torna-se um marcador de divisão pelo qual a lealdade é medida.

O que fica evidente no exemplo da SAP é mais do que uma disputa interna sobre regras linguísticas. Em última análise, não se trata de crenças e da pretensão de agradar a todos. Trata-se de lucro. A discrepância é óbvia: na Europa, a SAP desenvolve diretrizes detalhadas; nos EUA, os programas são reduzidos assim que a estrutura política e legal sugere o contrário. A mesma empresa que insiste na igualdade aqui renuncia às cotas femininas lá. Não porque os valores tenham mudado, mas porque parece economicamente viável.

Para Elias P. e seus colegas, isso comprova que a questão de gênero no contexto corporativo funciona menos como uma declaração social do que como parte de uma estratégia de posicionamento global. É uma ferramenta que se dirige principalmente a investidores e mercados, e que pode ser abandonada com a mesma rapidez quando necessário. E enquanto certos grupos ganham visibilidade, outros se sentem excluídos. Enquanto externamente se fala em abertura, internamente há uma crescente sensação de pressão para se conformar e restrições linguísticas.

*Nome alterado

Berliner-zeitung

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